terça-feira, 26 de setembro de 2023

Nãoao abate de aves nativas dos Açores


Não ao abate de aves nativas nos Açores

Perante os recentes planos do Governo Regional dos Açores de autorizar o abate de aves protegidas, como o pombo-torcaz-dos-Açores (Columba palumbus azorica) e o melro-preto-dos-Açores (Turdus merula azorensis), supostamente por causarem prejuízos à agricultura ou devido a um excesso de população [1], afirmações feitas sem nenhuma base científica ou técnica, queremos denunciar as recorrentes falsidades com as quais se pretende justificar este novo e grave atentado contra a fauna e a natureza das nossas ilhas.

É falso que exista um excesso de população destas aves nativas. Na realidade, todas as espécies nativas têm os seus próprios mecanismos de regulação natural, não fazendo qualquer sentido, na ausência de desequilíbrios induzidos, pensar em excessos de população, e ainda menos num meio de tão reduzidas dimensões como o nosso arquipélago. O conceito de excesso de população só é aplicável, regra geral, às espécies exóticas invasoras, introduzidas pelo homem no arquipélago e, portanto, sem nenhum tipo de regulação natural, como é o caso do coelho-bravo e dos ratos, espécies efectivamente causantes de importantes danos na agricultura.

Pelos mesmos motivos, é uma falsidade dizer, em rigor, que uma ave nativa pode ser considerada uma praga. Não existe, de facto, nenhuma ave nativa nos Açores que possa multiplicar-se de forma rápida e sem controlo criando subitamente uma superpopulação causadora de danos.

Pelo contrário, a situação das espécies nativas é muito preocupante em termos de conservação. O pombo-torcaz-dos-Açores é uma espécie incluída no Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal [2] e a legislação europeia confere-lhe a máxima protecção, proibindo expressamente o seu abate (Directiva Aves, Anexo I), proibição que é igualmente aplicável durante o período reprodutor a qualquer outra espécie protegida.

A população do pombo-torcaz-dos-Açores apresenta-se, na realidade, muito reduzida como consequência da progressiva perda do seu habitat natural, constituído pela floresta laurissilva, quase desaparecida na actualidade, e por causa da caça ilegal [2]. A densidade de população da espécie nos Açores é muito mais baixa do que é habitual para a mesma espécie no continente, contabilizando-se apenas 5 aves/km2 em época pós-reprodutora na maioria das ilhas [3]. Deve considerar-se também que durante a época reprodutora, que vai de fevereiro a setembro, a espécie tem ainda um comportamento territorial [4].

As características da reprodução desta espécie fazem com que uma eventual recuperação das suas populações seja muito difícil, pois de forma geral só têm uma cria por ano. Pior ainda, segundo um recente estudo realizado na Terceira [4], a ilha aparentemente com maior abundância da espécie, o seu sucesso reprodutor é de apenas 9%, chegando a juvenis só uma décima parte do número inicial de ovos. E mais de metade dos indivíduos juvenis poderia não sobreviver ao primeiro ano de vida [3]. Nestas condições, portanto, é irrealista falar de excesso de população ou de que a espécie possa multiplicar-se fora de controlo, sendo certo que o abate de exemplares poderia colocar em grave risco a sobrevivência da mesma.

A verdade é que a desaparição desta espécie é uma possibilidade bem real, como indica o triste exemplo do arquipélago da Madeira: o pombo-torcaz-da-Madeira (Columba palumbus maderensis) foi completamente exterminado em tempos recentes, encontrando-se a espécie actualmente extinta [2]. E a outra espécie de pombo nativo deste arquipélago, o pombo-trocaz (Columba trocaz), continuamente acusado também de causar prejuízos à agricultura, já desapareceu da ilha de Porto Santo, sobrevivendo actualmente apenas na ilha da Madeira.

De facto, pensa-se que há poucas décadas o próprio pombo-torcaz-dos-Açores poderia ter estado próximo da extinção, reduzido talvez a só duas centenas de casais reprodutores, e unicamente foi salvo pela proibição da sua caça na década de 1990 [3]. Curiosamente, mesmo nesses momentos a espécie continuava a ser acusada de causar danos e de estar em excesso. Os estudos existentes revelam, neste sentido, uma incongruência entre as queixas dos agricultores e o comportamento observado nas aves, responsáveis por apenas estragos pontuais e localizados [5].

Na realidade, existe frequentemente uma incorrecta percepção das espécies que são responsáveis pelos danos nas culturas. Apesar de que os viticultores dos Açores têm assinalado muitas vezes estas espécies como pragas, sendo por vezes eliminadas por isso, um recente estudo realizado na ilha Terceira [6] demonstra que o pombo-torcaz-dos-Açores e o melro-preto-dos-Açores provocam danos pouco significativos neste tipo de culturas. Pelo contrário, as principais responsáveis pelas perdas são duas espécies exóticas invasoras: a lagartixa-da-Madeira (Teira dugesii) e o pardal-doméstico (Passer domesticus), para além das várias espécies de ratos, todas elas igualmente invasoras. Resultados semelhantes foram obtidos na ilha do Pico [7].

Outra das aves acusada de ser uma praga, o melro-preto-dos-Açores, é na realidade uma espécie de comportamento territorial, não existindo portanto possibilidade de haver altas densidades de exemplares nem excessos de população. Para além disso, a sua alimentação é omnívora, consumindo ao longo do ano insectos, lagartas, minhocas ou caracóis, pelo que resulta de facto incompreensível esquecer agora o seu possível papel benéfico para a agricultura, próprio deste tipo de aves [6].

Numa situação diferente em relação às anteriores encontra-se a rola-turca (Streptopelia decaocto), uma espécie que tem vindo a colonizar o continente europeu durante o século passado e chegou aos Açores há apenas uns quinze anos, tendo-se reproduzido e expandido desde então pelo arquipélago. Devido à sua recente chegada, pouco é sabido sobre o seu comportamento e a sua possível tendência populacional, ainda que o mais provável é que venha ocupar um habitat semelhante ao do pombo-das-rochas. Refira-se, já agora, o desconhecimento que existe também sobre esta última espécie, considerada cinegética, pois a forma própria das ilhas, o pombo-das-rochas-atlântico (Columba livia atlantis), poderia ter desaparecido devido à introdução e hibridação com as numerosas variedades domésticas da forma continental da espécie.

Apesar de tudo o referido, o Governo Regional decidiu avançar agora, de forma despropositada, com a autorização do abate da rola-turca [8] sem se conhecer a dinâmica da sua população nem quantificar os danos que esta nova espécie nativa possa produzir. A recente autorização contradiz claramente a legislação vigente, pois não são apresentados os imprescindíveis estudos sobre a situação da espécie, não se dá prioridade a métodos de controlo não violentos, não se colocam limites ao abate e não se evita o período reprodutor da espécie. Para além disso, o Governo insiste na falsidade dos danos desta espécie nas culturas vitivinícolas, estigmatizando e relacionando este sector com práticas ambientalmente reprováveis. E longe de tentar clarificar todas estas questões, o Governo Regional ainda evitou propositadamente o debate deste tema na Assembleia Regional [9].

Não há dúvidas de que em toda sociedade moderna qualquer actividade económica, onde a agricultura se insere, deve respeitar limites e regras, não sendo aceitável que essa actividade atente contra as pessoas, a natureza ou o ambiente. Uma agricultura que se quer sustentável e com futuro deve adoptar necessariamente um modelo de actividade integrado e em harmonia com a natureza, mostrando um respeito crescente pelos ecossistemas naturais nos quais se insere.

Surpreende que, ainda hoje, a natureza possa ser considerada como o inimigo e a única solução para qualquer problema seja matar e eliminar as espécies existentes, uma situação própria de tempos passados, quando por exemplo o priolo (Pyrrhula murina), uma ave endémica da ilha de São Miguel, foi considerada nociva e quase exterminada pelos danos que supostamente causava nas culturas de laranja [10]. Mais surpreendente é que o Governo Regional alinhe nesta visão retrógrada e, longe de proteger a fauna nativa e a agricultura, dedique o seu tempo a insistir em falsidades em vez de procurar soluções reais. Existem, de facto, muitas e variadas formas de minimizar os possíveis danos produzidos pelas aves na agricultura: protecções com redes, dispositivos afugentadores de diferentes tipos, plantação simultânea de culturas alternativas, para além das compensações económicas pela eventual perda de rendimentos.

Não é esta, infelizmente, a primeira tentativa de introduzir na região o abate de espécies de aves protegidas. Já em 2015 pretendeu-se autorizar o abate das duas primeiras espécies citadas e do estorninho-dos-Açores (Sturnus vulgaris granti). Finalmente, perante a falta real de argumentos e perante a oposição da opinião pública, o abate foi substituído por medidas reais para minimizar os danos causados na agricultura, preservando-se também, desta forma, a classificação da Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico. Naquele momento, o protesto incluiu uma petição pública [11] que recolheu quase um milhar de assinaturas, contando também com o apoio de diversas organizações ambientalistas regionais e nacionais.

As aves nativas dos Açores, resultado de milhões de anos de evolução, são únicas no mundo, possuem um elevado valor natural e desempenham um papel fundamental na manutenção dos frágeis e ameaçados ecossistemas insulares. É necessário, portanto, adaptar a prática de uma agricultura sustentável à imprescindível protecção das nossas espécies e da natureza das nossas ilhas.

Referências:

[1] Açores vão controlar excesso de aves protegidas que são praga para agricultura. Lusa, 14/08/2023. Acedido em: https://www.sapo.pt/noticias/economia/acores-vao-controlar-excesso-de-aves_64da64e96714d631b617b6ab

[2] Almeida, J., Catry, P., Encarnação, V., Franco, C., Granadeiro, J.P., Lopes, R., Moreira, F., Oliveira, P., Onofre, N., Pacheco, C., Pinto, M., Pitta Groz, M.J., Ramos, J. & Silva, L. 2005. Columba palumbus Pombo-torcaz. Em: M.J. Cabral et al. (eds), Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal, p. 329. Instituto da Conservação da Natureza, Lisboa.

[3] Dickens, M. & Neves, V. 2005. Post-breeding density and habitat preferences of the Azores Woodpigeon, Columba palumbus azorica: an inter-island comparison. Arquipélago. Life and Marine Sciences 22A: 61-69.

[4] Fontaine, R., Neves, V.C., Rodrigues, T.M., Fonseca, A. & Gonçalves, D. 2019. The breeding biology of the endemic Azores Woodpigeon Columba palumbus azorica. Ardea 107: 47–60. doi:10.5253/arde.v107i1.a4

[5] Plano Sectorial para a Rede Natura 2000 – Açores. Espécies da Directiva Aves/Habitats 140/99 Diário da República Anexo A-1: Columba palumbus azorica. IslandLAB. https://islandlab.uac.pt/fotos/publicacoes/publicacoes_Columba_palumbus_azorica_EspeciesDirectivaAvesHabitats140_99_DiarioRepublicaAnexoA-I.pdf

[6] Lamelas-López, L. & Ferrante, M. 2021. Using camera-trapping to assess grape consumption by vertebrate pests in a World Heritage vineyard region. Journal of Pest Science 94:585–590. https://doi.org/10.1007/s10340-020-01267-x

[7] Genética revela que pombo-torcaz é mesmo único nos Açores. Diário Insular, 09/06/2022.

[8] Despacho n.º 1556/2023 de 8 de setembro de 2023. Jornal Oficial II Série - Número 174, 8 de setembro de 2023. https://jo.azores.gov.pt/#/ato/0f622003-4b8b-432c-848f-9cfb8820beec

[9] Partidos de direita ignoram estudo e permitem abate indiscriminado de ave protegida provocando danos na biodiversidade e reputacionais. Nota de imprensa do Grupo Parlamentar do BE. http://base.alra.pt:82/Doc_Noticias/NI18508.pdf

[10] Tavares, J. (coord). 2015. Parecer do Departamento de Biologia sobre o “Projecto de Resolução Nº96-X – Plano estratégico de combate às pragas dos Açores”. Universidade dos Açores. http://base.alra.pt:82/iniciativas/p_social/ps1588.pdf

[11] Petição Pública: Em Defesa da Avifauna Açoriana. Pela conciliação da protecção das espécies com uma exploração agrícola sustentável. http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=DefesaAvifaunaAcores

ASSOCIAÇÕES E GRUPOS ASSINANTES:

Amigos dos Açores – Associação Ecológica

Amigos do Calhau – Associação Ecológica

IRIS – Associação Nacional de Ambiente, Núcleo Regional dos Açores

Avifauna dos Açores

Coletivo Açoriano de Ecologia Social

Sem comentários:

Enviar um comentário